Práticas pedagógicas: multiculturalismo e diversidade - a inclusão dos afro-descendentes

17/11/2008 14:49

 

João Pereira dos Santos Neto
Rossiene Santos Sarlo *
 
 
 

Ser educador/a hoje no Brasil, é antes de tudo, um ato de ‘fé' na capacidade do ser humano de se transformar. Temos que acreditar nas possibilidades da escola, enquanto organização, capaz de superar as imensas limitações que a cercam e a oprimem; nas potencialidades da ação coletiva do professorado e em nossa capacidade de atualizá-las. “É a necessidade de não ser espectador e ousar arriscar gestos” (FISCHMANN, 2000, p. 91).

A nossa formação como profissional da educação muitas vezes é marcada por inculcações de preconceitos que, sem sombra de dúvida, corroboram para produzir maiorias invisíveis e silenciadas. Somos ‘treinados' para não escutar vozes que vem sendo reiteradamente silenciadas, como a dos afrodescendentes.

 
 Aprendemos nos livros, nos meios de comunicação, na grande mídia, nos filmes, revistas, outdoors, jornais... a idealizar algumas características humanas como as representações legítimas e naturais do que seja ser humano. Normalmente homens, brancos, padrão euro-norte-americano de vestir e agir (TRINDADE, 2000, p. 11).  
 

Sendo assim, uma das grandes preocupações na contemporaneidade é a construção de uma educação com qualidade para a totalidade da população. Uma escola que entenda que todos/as têm o direito de não só nela ingressar, mas nela permanecer, aprender e sair com conhecimentos que os/as possibilitem viver na sociedade participando efetivamente da construção/reconstrução de uma comunidade humanitária, solidária, cidadã.

Uma, entre tantas possibilidades de práticas pedagógicas que existem, é a de se desconstruir o currículo oficial – engessado e engessante – e trabalharmos a partir de Unidades Temáticas pensadas a partir de um planejamento coletivo com todos/as autores/as e atores/as após investigarmos/procurarmos saber um pouco das crianças/jovens e adultos da comunidade local onde estamos inseridos.

Não podemos esquecer que é de suma importância trabalhar a partir da realidade de alunos/as, e nós professores/as, para efetivamente contemplarmos uma perspectiva inclusiva, precisamos construir um currículo que vá além do que está prescrito, que emirja do cotidiano escolar e contribua para fazer discussões de acolhimento ao outro/a. É preciso pensar em atividades alternativas que valorizem a pluralidade cultural e as diferentes possibilidades dos nossos iguais, alguns que muitas vezes têm necessidades educativas especiais, outros/as de etnia e culturas diversificadas, e outras tantas diferenças que só têm a contribuir no nosso desenvolvimento, mas que vêm sendo entendidas como desigualdades. E para tanto se faz necessário que se trabalhe numa perspectiva de investigação/exploração das ricas possibilidades existentes propiciando/provocando uma troca enriquecedora.

 
 Uma prática docente que seja voltada para a diversidade étnica e cultural da nossa população, sobretudo dessa população que, ao longo da história do Brasil, vem sendo alijada dos direitos civis, sociais e humanos [...] Uma prática docente política, ideológica e humanamente comprometida como nosso povo mestiço, belo, forte, que luta, que surpreende, que ri, que chora, que cria cotidianamente saberes, estratégias, práticas que possibilitem viver/sobreviver, num tempo em quem a exclusão social é vista como um valor positivo e como inevitável (TRINDADE, 2000, p. 15-16).  
 

Na perspectiva de reconstrução das práticas e resultados escolares como parte de um processo mais amplo de recriação social, não podemos esquecer que somos importantes atores/as e autores/as, pois nós professores/as somos sujeitos autônomos, ativos/atuantes na sala de aula e nas possibilidades concretas de elaboração de práticas pedagógicas cotidianas capazes de contribuir com a construção do sucesso escolar de todos/as que chegam à escola.

Como afirma Esteban (2001) é preciso indagar as vozes silenciadas e as vozes amplificadas nos discursos da escola e sobre a escola; interrogar os discursos legitimados sobre a infância, sobre a adolescência, sobre os jovens, sobre o adulto, sobre a aprendizagem, sobre o ensino, sobre os usos escolares da linguagem escrita, sobre os parâmetros de sucesso ou fracasso escolar. Precisamos estar em constante estado de reflexão-ação-reflexão, indagando, investigando, buscando sempre, num continuum permanente .

Silva (2000) nos alerta quando diz que não podemos esquecer que a identidade e a diferença são interdependentes e resultantes da criação sócio-histórica humana por meio da criação lingüística. É pelo discurso que se estabelece e se valoriza o que é considerado ‘normal' ou ‘anormal', sem considerar que cada indivíduo apresenta características específicas, próprias, singulares e ímpares.

Dessa forma, ainda segundo Silva (2000) toda reflexão que envolva identidade e diferença deve levar em conta as diferentes visões de mundo, de homem, de mulher, de sociedade e de moralidade que são produzidas social e culturalmente em cada região e em diferentes intervalos de tempo, podendo-se constatar a existência concreta de sujeitos com traços característicos, que estão e são distantes do padrão aceito como ‘normal'.

Assim, é importante entendermos a relação cultura e educação. De um lado está a educação e de outro a cultura como o lugar, a fonte que nutre o processo educacional que tem intenção de formar pessoas, para formar consciências. “A cultura é, pois, essa dinâmica de relacionamento que o indivíduo tem com o real dele, com a sua realidade, de onde vêm os conteúdos formativos, ou seja, de formação para o processo educacional (SODRÉ, TRINDADE, 2000, p. 17)”.

 
 Nem sempre no Brasil, e no resto do mundo de uma maneira geral, a ausência de letra, o analfabetismo, o não ser letrado, quer dizer que não se seja culto. É possível ter sabedoria, ter cultura, no sentido de uma instrumentalidade para lidar com o real, sem passar pela letra. É claro que é necessário alfabetizar-se, porque é isso que qualifica o sujeito para o emprego [...]. Todo mundo tem que aprender a ler, todo mundo tem que ir para a escola (SODRÉ, TRINDADE, 2000, p. 19).  
 

Reconhecer e respeitar a diversidade cultural existente nos obriga a revisarmos-nos e provavelmente levará a educação a desembaraçar-se de ter se tornado máquina de produção de profissionais e de diplomas burocratizantes.

Não podemos nos esquecer de que quem faz o professor/a é a escuta do aluno/a. A escuta nos propicia a nossa construção como docentes. As salas de aula devem ser dinâmicas, espontâneas, participativas, espaço-tempo onde todos/as podem se expressar, falar do seu lugar, da sua cultura, serem ouvidos e ouvirem. Devemos trabalhar com temas relacionados às vidas e experiências dos alunos/as, estimulando-os a levarem a comunidade para a sala de aula.

A escola, muitas vezes, não tem sido um espaço democrático e de igualdade, pois sem que perceba repete as relações de dominação e de exploração da sociedade, por meio da exclusão da escola e na escola de alunos/as que não correspondem à identidade “normal, natural, desejável e única”, porque vivemos numa sociedade na qual a supremacia é a identidade ditada pelo modelo econômico e cultural ocidental, como salienta Santos (2002).

Ensinar alunos/as afro-descendentes requer mais do que prepará-los para um sucesso individual, significa prepará-los para a sobrevivência: da própria pessoa, da família, da comunidade e das outras pessoas (SODRÉ, TRINDADE, 2000).

Para resgatar as diferentes culturas que estão no cotidiano de uma sala de aula os trabalhos de pesquisa são de uma riqueza enorme e devem contar com a participação da comunidade escolar como um todo, unido e parceiro. Tendo como ‘pano de fundo' uma concepção interacionista de educação, entendendo que explicações individuais e correções imediatas são menos significativas na remoção de obstáculos de aprendizagem do que situações desafiadoras e interativas.

Como Freire (2002) acreditamos que é importante que se estabeleça e que se lute por relações horizontalizadas no fazer pedagógico, para que as relações estabelecidas entre professor/a e aluno/a se dêem e se firmem por meio do diálogo, por relações permeadas de afeto, respeito, cuidado e embasadas em um sólido compromisso técnico e político do professor/a para com a apropriação de saberes significativos por parte dos alunos/as. “A competência técnico científica e o rigor de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu trabalho, não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas” (FREIRE, 2002, p. 11).

Trata-se de uma excelente oportunidade, o trabalho com Unidades Temáticas, porque pode contribuir efetivamente na construção/reconstrução da identidade da criança/jovem e adulto afro-brasileira, pois temos um número enorme deles/as na escola e na sociedade de maneira geral. Sabemos que é um trabalho que não se esgota porque são crianças/jovens e adultos que foram historicamente perdendo a sua identidade através de um perverso processo de ‘esquecimento' e negação de sua verdadeira história e de sua cultura de origem.

Buscando contribuir para a construção/reconstrução da identidade das nossas crianças/jovens e adultos afro-descendentes, atendendo a Lei N.º 10.639/03 que alterou a carta magna da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei N.º 9.394/96, várias atividades didático-pedagógicas podem ser pensadas pelo coletivo de profissionais e alunos/as sempre procurando por meio de pesquisas a riqueza do Continente Africano com sua cultura que faz parte das nossas construções sócio-históricas. Entre elas o trabalho com músicas, costumes, comida, religião, festas, brinquedos e brincadeiras, danças e os grandes personagens negros/as de hoje e de ontem, numa busca incessante de deixar evidente a rica herança cultural que nos construiu e nos constrói diariamente.

Criar alternativas pedagógicas que possibilitem que tão difícil processo de construção/reconstrução seja pensado por todos/as que estão fazendo a escola hoje é de suma importância porque a sociedade continua a atuar no sentido de que se mantenha o status quo. Garcia (2004, p. 133) afirma que “as crianças e as professoras afro-brasileiras são ensinadas diariamente, através das relações de trabalho e dos meios de comunicação de massa, a valorizar os padrões de comportamento, a ética e a estética da civilização ocidental, burguesa, branca e patriarcal” e sabemos que ao confirmarem-se esses padrões e valores, cooperamos para manutenção das relações de dominação.

Dessa forma, as práticas pedagógicas pensadas por meio de um trabalho coletivo objetivam desconstruir um imaginário de repressão, de desvalorização por meio da desconstrução de um currículo que vem sendo pensado por pessoas que estão longe do cotidiano escolar, e para tanto é preciso contar com a participação de todos/as – atores e atrizes e autores e autoras – que vivem o dia-a-dia da/na escola num trabalho que não cessa, que não tem regras determinadas, nem fórmulas mágicas. Trata-se de um trabalho de pesquisa constante que exige ação-reflexão-ação num continnum , porque existe o entendimento de que não há mais espaço para unidades engessadas, pré-determinadas, fixas e homogêneas.

O trabalho de desconstrução/construção propicia não só a participação, mas a aprendizagem e a apreensão das peculiaridades do povo afro-descendente valorizando uma cultura que vem sendo desvalorizada e também busca contribuir para a formação de maneira valorativa da cidadania multicultural de um povo miscigenado, híbrido e diverso em sua singularidade/individualidade e subjetividade em constante construção/desconstrução.

Se faz de suma importância introduzir na escola a discussão sobre a nossa história, tanto local como global, porque as histórias estão imbricadas, entrelaçadas em fios que vão se tecendo e se emaranhando. É preciso que discutamos sobre a construção e a manutenção da hegemonia ocidental – do homem branco – para que possamos construir a corrente contra-hegemônica.

A história dos vencedores, ao ser dialetizada com as lutas contra-hegemônicas, revelará a história dos que vêm sendo vencidos e com isso podemos contribuir para romper com a visão ensinada na escola “em que bem e mal se opõem, o bem representado pelos interesses brancos hegemônicos, e o mal, personificado nos negros trabalhadores, apresentados como perigosos” (GARCIA, 2005, p. 135).

Podemos trabalhar com práticas pedagógicas que envolvam as danças de origem afro, que são belíssimas com todo o colorido que tanta embeleza as negras e os negros. Como também, por meio do teatro, das histórias e da poesia, entre elas as de Castro Alves, a situação dos escravos quando chegavam ao Brasil nos navios negreiros. Trabalhar com ‘contação' de histórias de Princesas africanas lutadoras, belas, inteligentes, femininas, e ainda explorar por meio de pesquisas e apresentações a capoeira, o makulelê e o samba, heranças tão negras e tão belas.

Há de se fazer uso de uma pedagogia libertadora através de práticas pedagógicas que trabalhem com as ricas e diversas possibilidades de todos/as que vêm sendo excluídos na/da escola porque esta ainda se encontra muito ‘amarrada' a um modo, uma maneira, uma racionalidade de se fazer educação. Quando dizemos pedagogia libertadora, nos referimos a necessidade urgente de romper com ‘verdades' de certas/muitas pedagogias que parecem só conhecer, só pensar a escola e suas práticas de ensino-aprendizagem dentro da racionalidade técnica-instrumental. Desconsideram outras lógicas como a estético-expressiva e a ético-prática e, pensar a escola dentro de uma única lógica acaba por segregar, por excluir, além apagar a nossa identidade cultural, também contribui para a dita ‘não aprendizagem' de muitos e muitas que são tachados/as como alunos/as que têm problemas de aprendizagem. E não paramos para pensar e discutir as dificuldades de ensinagem que podemos ter.

 
 [...] não estamos sugerindo que há “uma” pedagogia libertadora completa, com estratégias e técnicas. Não há nada pronto para empacotar e comercializar para uso em dez lições. Estamos apenas sugerindo que as professoras que trabalham alunos negros e que são bem-sucedidas têm uma perspectiva positiva sobre o papel e uso da cultura africana [...] ao ensinar aos alunos, e ao reconhecerem que eles trabalham em oposição ao mesmo sistema que as emprega. Elas entendem e podem articular suas opiniões sobre o propósito social do ensino (BILLINGS; HENRY, 2000, p. 56, grifo dos autores).  
 

Portanto, compreendendo as diversas e múltiplas subjetividades, singularidades e maneiras de ser e estar no mundo, como também a riqueza da nossa história, devemos procurar contribuir para o entendimento/compreensão de construção de uma sociedade democrática onde não existe espaço para visões etnocêntricas e excludentes. É o respeito ao outro e outra em suas diversas e múltiplas subjetividades, seus saberes, suas culturas, seus jeitos de ser e de viver que faz necessário estarmos abertos e atentos para somarmos e não continuarmos dividindo.


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REFERÊNCIAS:
BILLINGS , Glória Ladson; HENRY, Annette. Confundindo as fronteiras: vozes da pedagogia libertadora africana nos Estados Unidos e Canadá. In: TRINDADE, Azoilda da; SANTOS, Rafael dos. (org.). Multiculturalismo: mil e uma faces da Escola. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

ESTEBAN, T. O que sabe quem erra? : reflexões sobre avaliação e fracasso escolar. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

GARCIA, Regina Leite. Currículo Emancipatório e Multiculturalismo – Reflexões de Viagem. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; MOREIRA, Antonio Flávio. (org.). Territórios Contestados. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum : a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

SILVA, Tomaz Tadeu. da. (org.). A produção social da identidade e da diferença. In: ______. Identidade e diferença : a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. cap. 2, p. 73 -102.

TRINDADE, Azoilda Loretto da. Olhando com o coração e sentindo com o corpo inteiro no cotidiano escolar. In: TRINDADE, Azoilda da; SANTOS, Rafael dos. (org.). Multiculturalismo: mil e uma faces da Escola. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

______. Entrevista com o professor Muniz Sodré. Cultura, diversidade cultural e educação. In: TRINDADE, Azoilda da; SANTOS, Rafael dos. (org.). Multiculturalismo: mil e uma faces da Escola. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
 
* João Pereira dos Santos Neto, mestre em Educação e professor da Faculdade Estácio de Sá/ES; Rossiene Santos Sarlo, mestra em Educação e coordenadora do Curso de Pedagogia da Faculdade Estácio de Sá/ES