Neafro entrevista: Ana Lúcia Pereira

20/11/2008 14:27

Entrevista com Ana Lúcia Pereira

20 de novembro – Hoje, celebramos o dia Nacional da Consciência Negra, e é com muita alegria que publicamos a primeira entrevista de nossa autoria.

Escolhemos Ana Lúcia Pereira, socióloga e professora universitária, figura atuante em organizações que lutam pelos direitos humanos dos negros e de todos.

Confira a entrevista

 

Neafro - A Universidade, que, teoricamente, é um espaço de vanguarda, um ambiente multicultural, já pode ser considerada um espaço livre de racismo?

Ana Lúcia. Infelizmente, não há nenhum espaço social no Brasil, livre de racismo. A Universidade carrega uma aura de ambiente multicultural, mas nem teoricamente isso acontece. A Universidade, como instituição que produz conhecimento, poderá ser (se ela quiser) um espaço de debate sobre as formas que o racismo, preconceito e discriminação se manifestam na sociedade. E, se houver uma vontade política, poderá encabeçar diversas ações de combate ao racismo no Brasil. 

 

Neafro - Nenhum currículo escolar é isento de intenções políticas. Em sua Universidade, nos diversos cursos, principalmente aqueles da área das ciências humanas, há a preocupação por currículos onde o negro seja respeitado em seus direitos como cidadão?

Ana Lúcia. Sou professora na Universidade Federal do Tocantins (UFT). No ano de 2006, os cursos de pedagogia ( a universidade é multicampi, portanto, temos quatro cursos de pedagogia), aprovaram os PPP (Projetos Políticos Pedagógicos), com uma disciplina optativa para o estudo das relações étnico-raciais no Brasil, em função da necessidade de preparar seu alunado para a implementação d Lei 10639/03, que insitui o ensino de história e cultura africana na Educação Básica. Outrossim, desde de 2004, existem 5% de cotas para alunos indígenas na universidade, já que o censo, naquela época, apontou que 62% do nosso alunado era negro. Finalmente, há o NEAB – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros que desenvolve estudos e pesquisas voltadas para as questões étnico-raciais no Brasil.

 

Neafro - É evidente que a herança econômica e social do escravismo continua a marcar a vida dos negros, mesmo após mais de 100 anos de abolição. Para você, a política de cotas ajuda a corrigir as injustiças do período colonial ou traz mais racismo ao ambiente universitário?

Ana Lúcia. Estamos completando 120 anos da assinatura da Lei Áurea, portanto, muito mais que 100 anos. Na minha opinião, existe uma grande diferença entre a necessidade que o país tem em corrigir as injustiças do período colonial – e a instituição de cotas é apenas UM caminho; e a questão do racismo no ambiente universitário. Uma coisa não tem nada a ver com a outra e, se a universidade não promover ações, projetos, programas e políticas que inibam a manifestação de racismo em seu ambiente, não são as cotas que vão acirrar. Isso é uma questão de opção política da universidade. A questão das cotas é uma conquista do movimento negro; é uma dívida histórica que o Estado brasileiro tem para com a população negra e deve ser implementada, caso o país queira que a democracia seja consolidada.

 

Neafro - O acesso a educação, a alimentação adequada, a moradia, a saúde, são direitos fundamentais dos seres humanos. Se reconhecer como “cidadão de direitos” é o primeiro passo para garantir uma vida digna. O que tem sido feito, no ambiente escolar/universitário, para que o negro se reconheça como cidadão de direitos?

Ana Lúcia.  Para garantir aquilo que chamamos de responsabilidade social, as universidades têm procurado discutir de forma mais aprofundada as questões das relações raciais no Brasil atrelada às questões dos direitos humanos. Ao longo dos 20 anos que estou dentro da unversidade, como aluna e como professora, percebo a existência de seminários temáticos, apresentações culturais, estudos, pesquisas, implementação de cotas raciais, atribuição de bolsas de auxílio para alunos cotistas, atribuição de bolsas de iniciação científica para alunos que desenvolvem pesquisas sobre relações étnico-raciais, promoção de cursos de especialiazação para professores das redes públicas de ensino fundamental e médio sobre a Lei 10.639/03. São ações que deveriam estar articuladas, mas infelizmente elas estão isoladas, como se somente um grupo de estudiosos ou simpatizantes da causa tivessem essa responsabilidade. Temos muito a caminhar para que essas ações façam parte de uma política educacional orquestrada pelo governo federal. 

 

Neafro - E a eleição do Obama, é um sinal de que os valores pessoais estão mudando?

Ana Lúcia. Não. A eleição de Obama é um sinal de que os norte-americanos estavam cansados da política de Bush e optaram por uma mudança radical. Os valores pessoais dos EUA e do mundo foram questionados e aí reside uma grande oportunidade de mudança. Para nós negros essa eleição é uma grande vitória porque sempre soubemos que os nossos talentos foram historicamente disperdiçados pelo racismo e preconceito. A possibilidade de ter um presidente negro é a oportunidade de mostrarmos ao mundo que somos seres humanos e temos condições de exercer com maestria funções políticas e intelectuais, desde que tenhamos acesso à uma vida digna com a garantia dos direitos. Queremos ter direito até de errar, porque somos seres humanos.

 

Neafro - Em sua opinião, o que deve ser feito para acabar com o preconceito?

Ana Lúcia. Eu confesso que há 25 anos tenho trabalhado diuturnamente para o preconceito diminuir, mas tenho certeza que ele não vai acabar. Quanto mais o capitalismo se desenvolve, a sociedade se degrada, os valores se extinguem, mais longe estamos desse ideal. No entanto, eu acredtio que podemos conquistar, através da lei, os nossos direitos e fazer com que os racistas e preconceituosos de plantão, possam ser punidos por qualquer ação que possa nos lesar. É nisso que eu acredito!



Ana Lúcia Pereira é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Campus de Marília; mestre em História pela mesma universidade – Campus de Assis. Doutoranda em Sociologia na Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara (FCL/Ar) onde participa do LEAD (Laboratório de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e da Diversidade), entre outros. Membro atuante dos APNs (Agentes de Pastoral Negros do Brasil), e, do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), onde coordena a Comissão Permanente de Segurança Alimentar e Nutricional das Populações Negras e Povos e Comunidades Tradicionais. É Professora Assistente na Universidade Federal do Tocantins (UFT).